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Treinar crianças: preocupações e objetivos


 João Palavra começou o seu percurso como treinador com 16 anos. No seu trajeto, passou a maior parte do tempo ao serviço da Dragon Force de Aveiro, tendo acompanhado equipas de elite, e onde esteve em contacto sobretudo com escalões de futebol de 7 e de 5. Na última época, auxiliou também na coordenação do FC Bom-Sucesso, equipa do município de Aveiro.

Atualmente, é cada vez mais recorrente as crianças começarem a jogar futebol num nível federado desde muito cedo. Esse facto tem de condicionar a maneira como os treinadores lideram o seu processo de treino, como interagem com os atletas e os diferentes conteúdos que pretendem transmitir. Mesmo tratando-se de meninos e meninas que são inscritos num clube de futebol com o objetivo de, essencialmente, se divertirem e crescerem de maneira mais saudável, isso não é algo que impossibilite o treinador de os tentar potenciar. Assim, potenciar o atleta, na minha perspetiva, para além de implicar o aprimoramento das suas competências técnicas, também envolve começar a perceber o jogo, as diferentes nuances do mesmo e iniciar a interiorização das particularidades dos diferentes momentos.

Tendo em consideração que me estou a referir a atletas de uma faixa etária mais baixa, facilmente se compreende que se trata de crianças que ingressaram no futebol federado há pouco tempo e que, por isso, técnico-taticamente ainda têm muito para aprender. A necessidade de os inserir numa conjuntura em que, todos os fins de semana, tenham de defrontar outras equipas num contexto mais competitivo, seja num jogo 3vs3, 5vs5 ou mesmo 7vs7, faz com o treinador tenha de ter o know-how capaz de os preparar para esses momentos. Daí, mesmo num cenário em que estejamos a falar de meninos e meninas tão novos, isso não invalida a necessidade de os capacitar com meios capazes de dar resposta às exigências da competição em que estão inseridos.

Posto isto, fortemente influenciado pela trajetória que tive como treinador, o meu processo de treino segue 3 grandes princípios (algo a que já tinha feito menção no último texto que escrevi aqui). Um deles implica que a criação de exercícios, para além de ir ao encontro daquilo que são as particularidades inerentes a um jogo de futebol, também permita potenciar os macroprincípios e subprincípios do meu modelo de jogo. Para mim, não faz sentido conceber um exercício de circulação e manutenção da posse de bola em que as equipas têm de atingir um determinado número de passes para pontuarem, visto que, em contexto competitivo, o propósito de um jogo de futebol é marcar golo num objeto que é físico e inamovível. Idealizar um exercício que não contemple um objetivo e características semelhantes ao jogo faz com que o mesmo seja desvirtuado. Num exercício descontextualizado, tanto a defender como a atacar, os jogadores movimentar-se-iam de maneira diferente do que fariam num jogo normal. Outro princípio é o da progressão complexa. Este defende que adquirir um “jogar” é um processo complexo, portanto, é suposto que o treino contenha exercícios com diferentes níveis de complexidade. Por fim, também me oriento por um princípio que reconhece a necessidade de salvaguardar a permanente relação esforçar-recuperar durante uma semana de treinos. Neste contexto em concreto, não assume grande relevância; no entanto, é algo que tenho em conta, pois assumirá maior preponderância quando tiver a oportunidade de pegar num escalão de uma faixa etária superior.

Apesar de tudo, seguindo estas diretrizes, acredito que a melhoria das qualidades técnicas dos atletas acontecerá naturalmente e de forma inevitável, mesmo não integrando exercícios meramente individuais durante as sessões de treino. Eu olho para esta questão como um elemento que faz parte de um sistema holístico. Não deve ser descontextualizado daquilo que são os restantes fatores de rendimento dos atletas, porque no jogo isso também não acontece. No entanto, cada vez mais admito a possibilidade de acontecerem situações dessas em casos muito particulares em que, tecnicamente, os atletas tenham muitas dificuldades. Acho que é um tema em relação ao qual o treinador deve ter alguma sensibilidade porque, na verdade, as competências individuais dos atletas são a alavanca que os ajuda a estar mais perto do sucesso.

A par do que já foi mencionado, o rigor e a exigência são ferramentas importantes para que o treinador tenha um maior controlo sobre o grupo de jogadores e sobre o treino em si. Particularmente por serem atletas tão novos, é fulcral garantir que os meninos gostem do treino e se sintam felizes a treinar e que o treinador tenha noção que, tratando-se de crianças, não pode agir como se fossem adultos.  Estes devem ser pressupostos imprescindíveis para se estar num escalão de formação. Parece algo óbvio, mas, infelizmente, ainda não é um dado adquirido por todos. Outro aspeto que eu valorizo bastante é a promoção de momentos de competição em todas as fases do treino. Isso garante que os atletas estão mais comprometidos com a tarefa, ficando, assim, mais perto de se transcenderem e melhorarem. Assegurar que o tempo útil de treino seja o mais longo possível também é uma das minhas preocupações. Se o treinador certificar-se que todos participam ativamente no treino, que as transições entre os exercícios são rápidas e que as palestras são breves e se foquem no essencial, está mais perto de garantir o pressuposto que mencionei na frase anterior.

Ainda que, teoricamente, a forma como eu penso todo o processo de treino estar minimamente bem definida, a verdade é que, face à tenra idade dos atletas, existem alguns desafios que devem ser tidos em conta. Um deles, e fortemente motivada pela promoção de momentos competitivos que defendo, é a questão de lidar com quezílias que possam surgir entre colegas de equipa. O treinador deve estar precavido que possíveis situações dessas possam acontecer e deve comprometer-se a agir o mais rápido possível para que evitar que essa situação comprometa o exercício ou até mesmo o resto do treino. O facto de se tratar de meninos e meninas tão novos faz com que haja maior dificuldade em mantê-los ligados ao processo. Este é outro desafio. Promover momentos que os atletas consideram satisfatórios é uma técnica que potencia um maior foco dos jogadores para a sessão de treino. Outra temática que vale a pena ser mencionada é a da motivação. Os treinadores devem ser criativos, empáticos e entusiastas para garantir que os seus atletas se sintam motivados durante as suas sessões de treino. Facilita a aprendizagem dos conteúdos da semana e a melhoria das competências técnico-táticas dos jogadores.

Apesar da essência do futebol ser transversal a todos os escalões de formação, de facto, existem algumas especificidades que o treinador deve ter em conta para que a probabilidade das coisas correrem bem sejam superiores. Tudo o que mencionei até aqui é a minha maneira de olhar para o processo de treino acreditando que, para a realidade abordada, é a estratégia ideal com vista ao sucesso do treinador e dos atletas. No entanto, aquilo que foi aqui escrito não é necessariamente uma verdade absoluta, por isso, estou sempre pré disposto a aprender e a moldar a minha perceção sobre a forma como se gere o treino nestas circunstâncias. 

(Podes ler o primeiro artigo publicado por João Palavra neste blogue, aqui)

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